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Português- uma língua "traiçoeira"

Para quem tem os conhecimentos mínimos de história, sabe que a língua foi desde sempre um importante elo entre os povos e a sua comunicação, embora fosse em tempos dominada por muito poucos. Na nossa civilização ocidental e particularmente nos povos latinos, esse saber era quase exclusivo do clero, que só a alguns monarcas e nobres o chegavam a transmitir e ensinar, pelo menos até à idade média.

No último século, o nosso país era dos que tinham uma das maiores taxas de analfabetismo e o ensino básico só começou a ser generalizado a partir da segunda metade do século.
Mas, só mesmo após a revolução de Abril, o ensino secundário começou a ser gratuito, daí que muitas famílias menos abastadas, tentassem colocar pelo menos um filho nos seminários, para poderem ter mais alguma instrução. Isto para não falar das numerosas famílias ricas que também o faziam, não só por esta razão, mas também pelo poder que o clero mantinha e de certa forma ainda mantém na nossa sociedade.
Assim sendo, ninguém era tão provido de conhecimentos, do domínio da língua e da escrita como os padres, e no último século, especificamente em Fão, temos e tiveram os nossos pais e avós o privilégio de conviver com os nossos doutos párocos, desde o Prior Gonçalo Viana, Padres Jerónimo Chaves, Manuel Azevedo, Cubelo, Borda, Alaio e Jó e mais recentemente os priores Nogueira, Manuel Gonçalves, José Vilar e finalmente o Padre Manuel Rocha.
E estes três últimos com quem convivemos, conhecemos e colhemos ensinamentos, também para além de padres também eram professores, embora creio, que apenas o Padre Rocha esteja no activo. O Padre Manuel Gonçalves foi até durante 4 ou 5 anos meu professor de Português no Externato Infante de Sagres, em Esposende e mais tarde no Liceu da Póvoa de Varzim. Ora, toda esta introdução transversal nos tempos, para vos falar de três pequenas histórias, de párocos não de Fão, mas de duas freguesias vizinhas.
É que, mesmo com os melhores conhecimentos da nossa língua, havia párocos, que se envolviam de tal forma nas aldeias e com as suas populações, que acabavam por se deixarem influênciar pelos costumes, hábitos e até pela sua forma de falar.
Eram os verdadeiros "pastores", vivendo, convivendo e partilhando com as suas "ovelhas". Isto terá acontecido há mais de 50 anos, e foram histórias banais mas que pela conotação da nossa língua "traiçoeira", se tornaram tema de muitas e hilariantes conversas, durante algumas gerações e que há dias ouvi contar num banco da marginal.

-"Na freguesia da outra margem do rio, o pároco de há algumas épocas atrás, tinha consigo uma irmã que tratava de umas leiras, junto à igreja, onde plantava vários produtos hortícolas e eram conhecidas pelas "Bordas".
Ora como esse terreno não tinha portões, qualquer pessoa ou animal o podia invadir, como aconteceu com umas vacas de algum paroquiano, que eventualmente se tenha desviado do seu habitual trajecto ou local de pasto.
O certo é que o animal, por sinal terá na sua invansão destruído algumas das sementeiras da irmã do padre, que queixosa e em prantos lavada, se lhe veio queixar.
O bom padre, na sua postura tranquila e reconfortante disse-lhe:
-Acalmaide-vos irmã minha, que isso não volta a acontecer, depois da correctiva que lhes vou passar na missa de domingo.
Assim no domingo seguinte, depois da homilia o padre dirigiu-se em tons mais graves e contundentes aos seus paroquianos dizendo:
-Meus senhores, esta semana passou-se algo de muito grave, algum dos vossos animais, deu cabo das bordas da minha irmã!
Perante estas palavras, o povo não se conteve e a gargalhadas mais ou menos abafadas, não as conseguiram evitar, ecoando pela sonoridade do templo sagrado.
Ruborizado, mas de pronto o pároco reagiu:
- Não vos risais, que estas não são as bordas que vós pensais!

Noutra das freguesias vizinhas, cujos habitantes viviam na sua esmagadora maioria da rude vida agrícola, o pároco local, tinha no quintal da residência paroquial uma vasta área de logradouro, onde estavam plantadas várias oliveiras de onde extraía as azeitonas, que produziam azeite suficente para alimentar as inúmeras lamparinas da igreja e até para seu próprio consumo.
Em certa altura, já com o "stock" de azeite reduzido e as oliveiras recheadas, o padre diligenciou para que as azeitonas fossem colhidas, tendo inclusivé já falado com alguns homens, que subissem às árvores com os galhos para as fazer tombar.
Assim e numa das missas seguintes ele apelou aos fiéis, dizendo:
- Na nossa sacristia, o azeite está a mingar, p'rá alumiar a nossa igreja e os altares e como as oliveiras já estão carregadas, eu espero a vós ajudandes.
Homens para malhar ó pro cima já temos, faltam as mulheres para apanhar ó pra baixo!

Ainda tendo este mesmo padre como principal protagonista, nesta mesma freguesia, aconteceu que um dia o sacristão apercebeu-se de uma rachadela no sino da igreja e de pronto o transmitiu ao abade.
Como se tinham passado alguns meses e este havia verificado com os seus próprios olhos o agravamento da lanhadela do sino, o pároco decidiu que estaria na hora de tomar as devidas providências, para o que precisaria da colaboração dos paroquianos.
Um dia na missa dominical, com a casa de Deus bem composta, ele na devida altura dirigiu-se assim à plateia: - Meu povo! O sino da nossa igreja está com uma racha enorme.E a racha quanto mais leva com o badalo, mais se abre...ahahahahah
A gargalhada generalizou-se e para o ruborizado padre, conseguir repor a ordem e adiantar, da necessidade de se fazer uma colecta para se comprar um novo, levou algum tempo."
E, longo foi o tempo que estas histórias se prolongaram nas memórias, passadas de boca em boca por algumas gerações, de alguns que as transmitiram como o Mário Belo, que naquele banco em frente ao rio e apoiado na sua bengala, de tez rugosa e raras cãs agasalhadas pelo boné, as conta com um notável pormenor descritivo, que faz prender o mais distraído trauseunte.
E assim, a auto-denominada "sociedade da bengala", onde se incluem muitos outros passageiros da marginal, como o Armando Gajeiro e o Geninho do Arménio, e muitos outros, vai animando as agora tranquilas manhãs e tardes das suas vidas e alegrando outros que conseguem disfrutar e aproveitar a sabedoria, que nos transmitem...