A palmatória da D. Ida
Foi maravilhoso ter nascido no “cantinho” mais encantador que Portugal tem. E bem próximo do nosso Senhor Bom Jesus. A minha avó, Emília do David, quase todas as tardes me levava para um dos bancos da Alameda e lá me dava a merenda.
Lembro-me do Sr. Valentim Cantoneiro, que cuidava da Alameda e da Capela. Era um bom homem. Quando a Capela estava aberta ia sempre visitá-la. A imagem do Senhor Bom Jesus sempre me atraiu. Sempre que vou aí, a primeira visita que faço é a Ele.
A Alameda do Senhor Bom Jesus, para mim, foi o “palco” das minhas brincadeiras. O Mando (Amândio Barra Reis), mais novo 1 ano e quase 6 meses, era o meu companheiro das brincadeiras. Morávamos perto um do outro. Jogávamos à bola. Baliza a baliza. O meu sonho era ser guarda-redes. Quando estava a chover o nosso “refúgio” era a casa dele ou a minha. Éramos bastante amigos (e espero que a amizade ainda continue). Tanto eu como ele tínhamos muitos jogos e isso era o nosso entretimento ou, então, íamos para o Coreto ou para o Châlet que ficava dentro do campo do pai dele, o saudoso Sr. Carlinhos Barra Reis.
Por vezes percorríamos o campo à procura dos ninhos dos passarinhos. Não para fazer mal, mas tínhamos curiosidade de os ver e em especial quando estavam a sair dos ovos. Os outros pássaros, deviam ser os pais, quando estávamos perto dos ninhos, andavam em volta de nós com receio de lhes tirássemos os seus filhotes. Chilreavam tanto.
O caseiro, o Sr. Cândido, que andava sempre de “olho” em nós, quando ouvia aquilo vinha logo ter connosco e dizia que podíamos observar, mas nunca tirássemos os ovos ou os passarinhos dos seus ninhos. Mas era bonito ouvir o piar daqueles pequeninos seres, que abriam os seus biquinhos como nos a querer pedir comida.
Que saudades que sinto desses tempos que guardo, para sempre, no “baú das minhas memórias”...
Não me esqueço mais a “prenda de anos” que os meus pais me deram quando fiz sete anos. Mandaram-me para a escola. Naquele tempo entrava-se para a escola aos sete anos e no dia 7 de Outubro. Foi a minha mãe que me acompanhou. Quando cheguei lá e quando entrei na sala de aulas e vi que a minha professora era a D. Júlinha Cubelo (foi, também, o ano em que ela iniciou a sua actividade) fiquei mais contente. Foi sempre uma excelente professora. Não gostava de usar a palmatória, mas, por vezes, alguns e algumas (a turma era constituída por rapazes e raparigas, a primeira vez que tal acontecia nas escolas de Fão) apanhavam uns puxõezitos de orelhas.
Eu, como era muito bem comportado e fazia tudo como devia ser, nunca fiquei com as orelhas vermelhas.
Só tinha aulas da parte da tarde. Das 1 às 5 horas. Tínhamos recreio, das 3 às 3 e meia. Gostava tanto. A minha avó tinha sempre o cuidado de me arranjar a merenda.
Em Maio levava sempre cerejas (gostava como ainda hoje gosto muito deste fruto). Pedia à minha avó que me deixasse separar as cerejas e então escolhia aquelas em que se podiam fazer “brincos” (duas ou três juntas). E ela fazia-me sempre a vontade.
Havia uma menina que simpatizava muito comigo e eu com ela (não vou dizer o nome, só digo que era do lindo lugar das Pedreiras, e me fazia companhia até onde eu morava, por vezes eu acompanhava-a até ao princípio da rua Serpa Pinto. Era bonita e deve continuar a ser).
Estava sempre ansioso pela hora do recreio e, então, íamos os dois merendar e eu como já tinha preparado os “brincos” ponha-os nas orelhas dela. Ficava toda contente e eu, claro, também. Inocentemente tirava uma cereja de um dos “brincos” e dava-lhe a cereja e ela fazia o mesmo para comigo. Podia ser o começo de um namorico. Mas não foi. Simplesmente brincadeiras de crianças. Porquê que o tempo não volta para trás?
Na 2ª classe, para espanto meu, dividiram a turma. Fiquei triste. A D. Júlinha foi dar aulas para outra escola do Concelho. As raparigas tiveram outra professora nova e nós, os rapazes, fomos para a D. Ida. Desgraça a minha, e de muitos, a palmatória dos buraquinhos estava à vista de todos. Em cima da secretária. Havia duas classes, 2ª e 4ª. Quando via algum dos meus colegas a estender a mão para levar com a palmatória, começava a tremer com receio que fosse o próximo a ser castigado. Era um alívio quando ela terminava a aula.
Uma semana antes de iniciar as férias grandes a D. Ida disse-me que eu não estava preparado para passar de classe. Não fui o único. Disse-o a mais alguns. Que podíamos ir para o recreio enquanto os outros faziam as provas de passagem. Chorei porque queria passar, mas, ao mesmo tempo, pensei que talvez fosse melhor repetir a 2ª classe do que andar com a D. Ida, e logo na 3ª classe.
A minha família (vivíamos todos na mesma casa) estava convencida que eu tinha passado de classe. Perguntavam se eu tinha feito as provas e eu dizia que sim. Nunca pensei no que poderia acontecer quando começasse o novo ano. Se pensasse teria contado a verdade.
O pior foi quando a minha mãe me foi matricular na 3ª classe. Ia toda contente. Quando lá chegou, disseram-lhe que eu tinha que repetir novamente a 2ª classe. Quando chegou a casa foi o bom e o bonito. Apanhei dois estalos na cara. Quem me salvou foi a minha querida avó. Todo choroso, e com a voz trémula, disse: “Mãe já viu a palmatória da D. Ida? Se visse também fazia o mesmo do que eu”.
E isto tudo por culpa de quem? Da palmatória dos buraquinhos que me “obrigou” a mentir.
Jorge de Sequeira