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MÁRIO FERREIRA BELO (2)

“Como deixamos a entender, as recordações com este fangueiro de 86 anos, desbobinam de tal forma que mais parece um novelo interminável de muitos quadros que o tempo não apagou nem turvou em todos os seus contrastes e tonalidades”.

Experiência no mar, quando a forja não dava para matar a fome

Mário Belo - ”Nas faltas de trabalho na oficina do meu pai também andei no mar, ainda rapazote. Primeiro no barco (um “canote”, barco pequeno de fundo chato, com 4 remos, a maioria sem velas e típico dos pescadores de Fão naquele tempo) do “Neca Bexiga”. Ele era conhecido pelo “homem das poçadas dos cavalos”, pois não era muito temerário e por isso, não passava além dos Cavalos de Fão, sendo também um pescador muito religioso. Apanhávamos fanecas e peixões (este considerado uma praga) a 1 metro do fundo, numa altura em que também víamos por aqui um certo tipo de golfinhos que desapareceu com a poluição. Mais tarde andei com o Carlos “Remador” e o cunhado Emílio Pedras, num barco maior já com 8 remos. Eu andava com eles por favor e não tinha direito a “deitar o anzol de baixo”, era uma regra antiga, que só com a autorização do mestre se podia deitar esse anzol para o congro. Eu tinha apenas um estralho com 5 anzóis, para a faneca, peixões e badejo, que no final me davam. A minha mãe depois ia vender esse peixe para “matar a fome lá em casa, onde havia muitas bocas a sustentar. Quando chegaram a Fão catraias de Âncora e Póvoa, ofereci-me para tomar conta do barco enquanto iam para as “Caldeiradas”. Por esse trabalho eles davam-me um cabaz de peixe, que era uma grande ajuda para a família, onde eu era o mais velho de 5 irmãos.
Nesse tempo havia uma tradição muito engraçada, que eram as “Caldeiradas” que os mestres dos arrastões faziam em Fão na casa das líderes das varinas, que leiloavam o peixe e o vendiam contratadas por eles e lhes pagavam com uma percentagem. Os de Âncora, faziam-nas em casa da “Elisa Pelica” e os da Póvoa em casa da Amália Vassalo”. Nessas caldeiradas, o meu pai também chegava a participar, com a sua guitarra, pois havia muita festa e cantigas e por isso também era presenteado com um cabaz de peixe. Foi um tempo de fartura no nosso mar e maior alegria do nosso povo que organizava bailes e farras. Essas catraias usualmente abordavam os arrastões estrangeiros, principalmente belgas e que em troca de Vinho do Porto e whisky, lhes enchiam os botes com peixes que não lhes interessava como, marmotas pequenas, ruivos, badejos, peixões, fanecas, cações, etc…
Havia mais de 80 barcos na nossa praia nos anos 30/40, a maior parte “canotes” e algumas “catraias”, como as dos mestres Alberto “Puxes”, Arménio, Carlos Remador e o Manuel da Estela, que era conhecido por “O rei da lagosta”.” (Francisco Ferreira e os sócios da "Jaime Silva")

”Nos Estaleiros Navais em Esposende

”Por volta de 1941, o Mestre Francisco Ferreira, da família das “Felicianas” das Pedreiras, que já tivera estaleiro de construção naval em Fão, mas devido ao assoreamento se mudara para Esposende, foi contratado por uns armadores de Lisboa da empresa “”Jaime Silva” para fazer 3 navios, tal o seu prestígio como construtor.
O Francisco Ferreira, contratou o meu pai Alberto para dirigir a ponte de ferragens. Como ele mais tarde adoeceu, eu fui substituí-lo com apenas 19 anos, na altura da construção dos últimos 2 barcos, que foram também os últimos construídos em Esposende, o “Jaime Silva e o “Amisil”, dois lugres de 3 mastros, corria o ano de 1943. O “Amisil” foi concluído em 1945, que marcou o encerramento dos estaleiros navais no concelho, que atingiram um grande prestígio e marcaram uma época social, económica e cultural muito importante.
Durante este período, eu fiz muitos amigos na vila vizinha e participei em várias festas com a guitarra que já me acompanhava desde os 12 anos. Quando os navios iam à “carreira” para o “bota-a-baixo” havia uma grande festa na Pensão Rego, do Artur Rego, que era solicitador e amigo pessoal do Francisco Ferreira. Mesmo depois de fecharem os estaleiros, as farras continuaram a fazer-se com alguma frequência no mesmo local, tal a popularidade que ganhou e alegria que trouxe a Esposende.
Por essa altura sou chamado para o serviço militar e colocado perto de Lisboa.”


A guitarra, companheira de Riba d’Ave ao Brasil

“ Eu aprendi a tocar com o meu pai, que me fez uma primeira guitarra deveria ter uns 14 anos. Ele tocava com uma palheta (“pua”) de plástico e eu comecei a ver os guitarristas que vinham tocar ao “Galo d’Oiro”, a usarem uma unha postiça e então decidi fazer uma de plástico de acetatos. Depois fui-me habituando com o dedo e ia-me educando musicalmente pelo ouvido, quando escutava na Farmácia do senhor Pires, que era dos poucos lugares públicos onde havia um rádio. Os fadistas mais famosos eram a Maria Alice, que cantava a famosa “azenha velhinha”, o Frutuoso França e a Lucília do Carmo, mãe do Carlos do Carmo. Às segundas-feiras não perdia o programa que dava de fados. Mais tarde o Manuel Ferreira comprou um “Phillips” para o “Galo d’Oiro” e então ao meio-dia juntávamos à volta do aparelho para ouvir um programa de fados. O “Galo d’Oiro" era uma casa muito bem frequentada, como por exemplo o Dr. Martinho de Barcelos, o escultor António Esteves, Dr. Júlio Pimenta, Dr. Alceu Vinha e o irmão Abel, os irmãos Paulino e Joaquim de Campos, Agonia Pereira, Prof. Elias Cardoso, Prof. Pedras, Prof. Mário Ramiro e o João Pedro Pereira. Aí comecei a tocar mais tarde em noites muito animadas com o Chico Glória, companheiro de muitas farras e que era da minha idade. Ele também ia comigo tocar a Esposende à Pensão Rego, mas ali no “Galo d’Oiro" houve noites memoráveis, principalmente no verão, no quintal que tinha um poço no meio e as pessoas apinhadas pela escadaria interior e varanda. Os cantores que acompanhávamos eram o “Miro Careta”, o Zé Maia, Franklim Lima “Polinário”, Manuel Cardoso dos Reis “Neca Peralta”, o Domingos “D’Areia” e o Manuel “Cascalho”. A propósito do Manuel “Cascalho” que tinha um voz notável, um dia em Esposende, causou uma autêntica avalanche de pessoas à nossa volta quando cantou a “ciganita”, quando vivia por lá uma grande família de ciganos e com o resto do povo nos “obrigou a cantar toda a noite” com comes e bebes à fartura.
Um último iate feito em Esposende ( o “Nortada”), para a família dos Ferreiras de Riba d’Ave e desenhado pelo Dr. Manuel de Barros Lima, ainda eu trabalhava no estaleiro sob a chefia do Manuel Soares. Tinha feito uma peça para a “madre do leme” que só era possível tornear no Porto e os clientes ficaram espantados por eu o ter conseguido sem meios técnicos e com aquela perfeição. O Dr. Barros Lima disse-lhes então, -“Massa como esta é que vocês precisavam para a oficina da vossa fábrica”. Daí a me contratarem foi um pequeno passo e então lá fui para a “Oliveira & Ferreira” em Riba d’Ave, onde trabalhei 2 anos. Eu neste altura já namorava com a minha futura esposa, uma tripeira a trabalhar em Fão chamada Aurora e aí trabalhei 2 anos, onde ganhei para comprar o fato do casamento. Vinha a casa uma vez por semana, normalmente á boleia de camiões de carga. Claro que levei para lá a minha guitarra e comecei a fazer umas serenatas na companhia de uns estucadores de Afife, que moravam na mesma Pensão e cantavam umas coisas. Bem, aquela gente não estava habituada aquilo e foi um grande sucesso, sendo sempre muito solicitado. Voltei de lá em 1947 para casar com a Aurora da Silva Pires, mas ainda regressei para trabalhar durante mais um ano, mas como estava muito longe da família e entretanto surgiu a oportunidade de trabalhar no Hotel de Ofir, aproveitei para voltar.
No Hotel de Ofir, fui trabalhar para a garagem e manutenção. Na garagem lubrificávamos e lavávamos os carros dos clientes, para além de outras reparações e abastecimento de combustível. Na manutenção também não faltava trabalho, nas ferragens dos fogões, torneiras e outra maquinaria. O Eng.º Sousa Martins era amigo pessoal do Tino Glória e através dele convidou-me a ir animar no Bar dos Ingleses, com o Chico Glória, o Marco Reis e o Zé Maia. O Zé era um animador nato e punha os ingleses a dançar o “tiro-liro” em comboio passando por baixo do bilhar e deixou-me por muito tempo a lembrança do Sousa Martins e da D. Helena a rirem às gargalhadas.
Por outro lado já eu tinha acompanhado com a minha guitarra as reposições ensaiadas pelo Ernestino Sacramento, quando o meu pai ainda fazia parte do elenco como um dos principais actores. Depois comecei a colaborar com o Zé Maia, que foi o seu sucessor natural como ensaiador e líder das lides teatrais, quase sempre em benefício das principais instituições da terra.
Entretanto no verão, o Diamantino “Pelica”, que vinha de férias de Lisboa, dinamizou os serões em Fão, que passaram a ser únicos e de grande animação. As serenatas e farras no Cortinhal ou nas Pedras da Tia Leonora iam até ao dia, acompanhadas por cântaros de vinho, na altura muito barato (2 tostões o quartilho), que o Diamantino gostava de servir nas malguinhas espalhadas por aquele famoso pátio no Ramalhão ou pelo paredão do Cortinhal. Toda a gente cantava sentados nas escadinhas do Cortinhal, com muitos estrangeiros à mistura. Os principais cantores eram o Marco Reis que arrepiava toda a gente quando cantava “A Fiandeira” e o José Madureira com a sua “Ò estrelinha do norte, espera que eu já vou…”. Outra figura incontornável era o Júlio Monteiro que já estudava em farmácia e fazia as suas declamações a imitar os propagandistas da banha de cobra, que curava todos os males, usando aqueles termos técnicos que bem conhecia, com muito humor. Ele que acabou por se formar em Farmácia e em Arquitectura, ia connosco para todo o lado. Essas serenatas foram imortais, marcando uma época e foram-se realizando ininterruptamente enquanto o Diamantino teve saúde. Embora elas já existissem no tempo do Ernestino nunca foram tão abrangentes e concorridas como estas.
Por volta de 1951, já com 3 filhos nascidos, decidi tentar a sorte no Brasil, numa altura em que houve uma enorme debandada para aquele país. Só naquele dia em que embarquei no “Norte King” um velho navio a vapor que fazia uma das suas últimas viagens, com o seguro a caducar e por isso o mais barato, partiram mais 4 navios. A bordo seguiam mais de 1.000 pessoas e tivemos paragens na Madeira e em Cabo Verde, na viagem que demorou 17 dias com uma avaria, devido a ter-se rebentado a corrente do automático do leme e que atravessou o barco completamente no Atlântico durante várias horas. Mas eu e a minha guitarra lá chegamos sãos e salvos a terras de Vera Curz.”


Por terras brasileiras o Mário com a sua guitarra com certeza nos trará mais histórias, memórias de outros tempos e de outras pessoas muito deles fangueiros que naquele país proliferaram naquela época, como mais tarde em França e nos “entretantos” da vida fangueira, do qual é um dos seus mais fiéis narradores vivos e nos levará, se as contingências da vida nos deixarem a continuar a Recordar com…